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Bacana, mas imbecil

David é um cara bacana pra mim. Sinto relatar que é somente um imbecil pra outros. É que o cara prefere, quer saber, viver quieto: tomar seu café – que para ele traz um prazer inquestionável –, assistir à missa no domingo, correr com seu calção branco no sábado. Pleitear cargos mais altos na empresa? Não. Se vier, tudo bem. Se não, talvez até melhor. Se o dinheiro dá para pagar as contas, se guarnecer com uma reserva, comer legal, quer dizer que as coisas estão indo bem. O jardim no cantinho do seu minúsculo terreno de fundos brilha. A lua é observada várias vezes no mês, e a garrafa de Smirnoff Black sempre no fim, coitada, saboreada com sutileza e “requinte” todas as sextas à noite.

Sinto em relatar que o David é considerado um imbecil até mesmo por mim, apesar de achá-lo bacana também. Considero que penso desse modo para velar um sentimento de frequente busca por nada. É! Para abafar um inconformismo comigo e com tudo. Para afogar um sentimento de que o mundo é sempre vazio e sem nexo. Explico. Enquanto o trabalho para mim é ouro, pra ele, a família. Se pra mim é privilégio correr nervoso com projetos – que durarão a vida inteira para completá-los (quem sabe) –, para ele, correr aos sábados com aquele calção branco e MP3 no ouvido. Enquanto para mim é imprescindível na sexta à noite terminar de responder os e-mails que não consegui responder durante a semana, para ele aquela praga de garrafa de vodka, num “requintando” encontro com outros imbecis.

Acho que o David encontrou – observando ele parece tão fácil – a paz de espírito, o segredo da vida, a chave da felicidade. Mas, entenda, não posso deixar de considerá-lo um imbecil, apesar de bacana. É porque só assim conseguirei acordar todos os dias, levantar e seguir a vida.

(De) Formado

Perplexo com a idade. Isso poderia acontecer realmente. Tão vaidoso! As horas em que ele passava no banheiro fazendo esfoliação e passando cremes, loções e óleos ou coisas que o valham, somadas, davam o tempo de cem jogos de futebol ininterruptos, de muitas temporadas de seriado americano, de uma porção de novelas brasileiras, de milhares de idas ao bar ou de excessivas noites de amor. Perplexo. O espelho somente refletia sobre aquilo tudo, sobre o que o homem queria afinal, sobre o que é essa aflição humana. E a reflexão do espelho, esta sim, é válida, perfeita. Envelhecer deveria ser uma dádiva; deveria resultar num sentimento maravilhoso, de modo a sentir-se abençoado, afortunado; reconhecido como um ancião contemporâneo, como um mestre, que, silencioso, observa mais e fala menos, mas o que fala vale a pena ser guardado. Contudo, seus pensamentos preferem criticar aquela aparência, consternar-se com a realidade, e acreditar que, daqui para frente, a vida é recheada de dissabores.