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CAFÉ BRASIL

Era sagrado, todo dia depois do expediente tinha o happy hour no Café do Henry. Era uma casa sofisticadíssima, onde homens e mulheres, muito bem arrumados, relaxavam seus músculos com descontraídas conversas jogadas ao ar, abrigando certamente seres intocáveis e privilegiados com o sistema de produção (sempre quis dizer isso).

Eu saia do “meu” escritório de advocacia... bem, na verdade, não sou dono, nem mesmo sou advogado, minha função é assistente administrativo... e ia direto ao café. Lá se encontravam aqueles seres intocáveis, empresários, advogados, políticos, além de alguns pobretões, como eu, que fingiam ter dinheiro.

Naquele momento, eu era igual aos aristocratas, bem alinhado... valeu a pena investir toda aquela grana em ternos, sapatos e acessórios... bem informado, com um léxico muito bom e, por que não, bem-sucedido. “Sim, foram suspensos os dispositivos que concediam benefícios fiscais para esse tipo de empresa”, dizia eu a um colega, alertando-o. Todos ficavam embasbacados como eu refletia e analisava política, cultura, economia e como discutia filosofia e citava leis.

– Ah, sim! Albert Camus, Sartre e Thomas Mann. – Listava na ordem os autores dos livros que havia lido naquele ano. Na verdade, há um exemplar de cada um deles na estante do escritório. Decorei os nomes. Uhum, legal! Veja só: no fundo, li sim um livro neste ano: "O pequeno amigo", de Donna Tart. Gostei. – Prefiro os filósofos da transição do século XIX e início para o século XX, como Bachelard e Popper. – Ah! Minha memória não me deixa na mão!

Bem, a respeito de algumas coisas eu realmente mentia, confesso, mas sou fidedigno de que um dia serei um advogado sério, rico e pretensioso; o canudo é o que me falta – a práxis já conheço. Por enquanto, vou levando assim; fiz vários amigos, os quais acreditam que tenho dinheiro e respeito. Me consideram até descolado. É isso que importa: a imagem... a boa e velha imagem, nada mais!

O Café do Henry era decorado com telas de ídolos do rock – Elvis Presley, Janis Joplin, os descabelados do The Cure, Bob Dylan, Jim Morrison, Kurt Cobain e outros, e algumas pinturas de natureza morta impressionistas. As paredes em tons de preto e prata. No salão, havia mesinhas quadradas, postas estrategicamente como se formassem um tabuleiro de xadrez. O dono era o Henrique, mas todos o chamam de Henry... acho que é marketing, porque Henry é bem mais estilizado do que Henrique... que vez ou outra vinha conversar comigo. Não me lembro exatamente de sua feição, contudo aquela boca sobrenatural que ele tinha, meio apavorante, nunca saiu de minhas memórias.

– Bela tarde hoje, não?! – Ele indagou com aquela boca semelhante à de um moai da ilha de Páscoa.
– É, mas não vou poder aproveitar muito hoje... Sabe como é... família, filhos, horários... Só vou esperar passar um pouco mais o tempo, para aliviar o trânsito... (Traduzindo: minha grana acabou. Tenho que pegar o próximo ônibus.)

Certo dia, meus patrões receberam uma proposta para comprar um prédio em outra região da cidade. Veio então a notícia: iríamos nos mudar. No café, informei o acontecido. Houve uma manifestação no último dia – uma espécie de festa de despedida – com muitos apertos de mãos, outros abraços informais e alguns tapinhas nas costas. E assim acabou a minha história no café do Henry. Sinto saudades.

Hoje estou despreocupado, pensando até em estudar, melhorar minha vida. Acredito agora que, para trabalhar com leis, precisamos conhecê-las profundamente. Se quero ser um profissional, ter a grana, tenho que fazer direito. Chega de cabotinices!

Aliás, este bairro é muito bom, tudo é de primeira. Certa tarde, meu patrão dera folga ao motorista e pediu que guiasse seu belo carro prateado, visto que o trânsito o incomoda deveras, levando-o à casa de um cliente que mora próximo do escritório. Foi aí que acabei por descobrir o que para mim é um achado: o Café Brasil.

Era uma casa sofisticadíssima, na qual todos, muito bem arrumados, relaxavam seus músculos com descontraídas conversas jogadas ao ar.
Eu saia sempre do “meu” escritório de advocacia... na verdade sou assistente administrativo... mas um dia...

7 comentários:

  1. haha incrível, gostei muito, parabéns mesmo
    me identifiquei muito, a reputação é oque realmente vai contar, até pq...

    É mais fácil lidar com uma má consciência do que com uma má reputação.
    Friedrich Nietzsche.

    (:

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  2. Todo mundo gosta de fazer uma pequena promoção de si mesmo. Uns gostam mais, vira vício. Quem pode condenar?

    Ótimo texto. Beijos.

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  3. Ah sr pobretão, vo te conta um segredinho: os seres intocáveis são como vc, pensam que vc é um intocável. E os verdadeiros intocáveis estão comendo pastel com pingado na lanchonete da esquina...

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  4. Ah ah ah, é verdade! Tinha um professor de cursinho com quem eu trabalhei que ele ganhava uns 35 pilas por mês, mas, se vc visse ele na rua, era capaz de tirar dois reais e dar pra ele, de tão mulambento... e tomava pingado e comia pastel rsrsrsrsrs

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  5. Já havia lido e gostado. Li de novo. Gostei de novo.

    Bjos

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  6. Ultimamente coisas assim estão rondando algumas vidas revisionárias...
    Coincidência ou não, sentirei falta do Café do Henry, de suas tortilhas e suas empadas!

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  7. Hahahahahahaha no início do mês é almoço de vintão no shops, comida fria, atrasada e boi vivo no botequim... fim de mês é cincão no bife sujo... mas tudo é válido, até levar marmitão pra esquentar no microondas da empresa. Por falar nisso, você lembra da minha frase: "esquente o peru no rabo quente"?

    Muito bom o texto!

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