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O adeus

No lado externo da casa, um homem bem vestido dormia no gramado com o chapéu caído adiante. A quem passava na rua um sujeito na sarjeta parecia coisa de se estranhar, e assim o fazia.

Estava quente. Ao tempo que o homem resolvera acordar, livrando-se da toada de seus sonhos, ali mesmo no chão ainda úmido do gramado, a cortina laranjada com amarelo, tão apreciada por Dona Cortez, movimentava-se, moldando um rosto curioso no canto da janela. Parecia que na casa não havia quem soubesse a identidade daquele ser misterioso, visto que nem mesmo um mero atendimento fora dado, mas certo mesmo era que ninguém o temia, porque alarde nenhum fora feito.

“Espere!”, gritou ao perceber o vulto na janela, mas quem era fechou de pronto. O homem nem mesmo se levantou. Arrastou-se até o degrau da porta. Acendeu um cigarro. Estava abatido. Fitou o verde da grama como nunca havia. Encarou a brasa do cigarro fritar o fumo e papel que o enrolava. Ele gostava da cor. Ainda teria alguns segundos até que a porta se abrisse e saísse dela uma senhora com um avental azul com detalhes em roxo e que viria ao encontro dele, com uma bandeja em mãos, entregar-lhe um café da manhã. Havia na bandeja um pires pequeno sobre o qual descansava um pão com manteiga, um pequeno bule com leite quente, um prato de porcelana caro com frios, um pratel com um pedaço de bolo e uma singela jarra com suco de laranja.

O homem se levantou. Passou a mão no tecido amarrotado do terno tentando ajeitá-lo, soergueu o pescoço como se encarasse alguém e gritou: “Vera!”, “Vera!”. Era o primeiro nome de Dona Cortez.

Sentou-se novamente, pálido. Ele notou os frios na bandeja e os comeu primeiro. Depois tomou o suco. O pão com manteiga, acompanhado de café com leite sobrestados ali foram devorados de uma só vez. Dona Cortez espiava pela cortina. Ao vê-lo terminar, a senhora de cabelos pretos abriu a porta. Lançou um olhar de repulsa, enquanto ele se levantava cambaleando.

- Há dez anos você saiu de manhã para comprar pães e não voltou mais - anunciou com a voz firme. - Eu passei o café - dizia ela - esquentei o leite, espremi com estas mãos as laranjas, cortei o queijo, preparei uma massa de bolo. Você demorou, demorou... Liguei para a padaria. Você não havia ido lá. Depois de dias, meses, anos, percebi que você não voltaria mais. Desde aquele dia, eu guardo na geladeira um pouco daquele pó de café. Hoje eu o fiz para você - completou.

Ele passou novamente as mãos nas roupas e suplicou:

- Você me perdoa?

Seria possível perdoar? Ela ainda pensou que sim. Queria saber dele. Mostrar como tudo estava. Contar que iniciou um faculdade. Mas virou o rosto, deixando para ele um semblante soturno. Como de costume ela disse num agudo de sua voz:

- Já tomou seu café? Então adeus!

Dona Cortez lacrou a porta. O homem saiu pelo portão enquanto um vulto se moldava no canto da cortina. Mas desta vez, ao menos, ela pôde vê-lo partir.

6 comentários:

  1. Uma das coisas positivas de se publicar em um blog é que posso ler e reler o texto, lapidando-o mais do que se simplesmente o tivesse escrito e guardado na gaveta.

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  2. 10 anos! Safado. ahahaha

    Abs

    edu_emaail@hotmail.com

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  3. CHUPAAAAAAAAAAA!!! Hahaha... Em pensar que isso acontece e milho~es de casas por este mundo afora!

    Muito bom, curti!
    Maicon 'Juvenil'

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  4. Pois é, o blog tem um lado dinâmico que o papel não tem...

    Perdoar é um dom... Tem que ter as base...

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  5. Puxa, fiquei com pena da Dona Cortez, mas gostei do texto. :)

    Fabielle

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  6. Hum. Gostei da vingancinha dela. É uma tia ninja... rs.

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